domingo, 29 de junho de 2008

Mestre Valentim

Filho de um fidalgote português contratador de diamantes e de uma crioula natural do Brasil, o mulato Valentim da Fonseca e Silva, comumente conhecido como Mestre Valentim, destaca-se como um dos artistas mais originais em atuação no Rio de Janeiro entre o último quartel do século XVIII e o início do XIX. Seu estilo "híbrido", no qual concilia formas barrocas e rococós com certo sentido de contenção e sobriedade neoclássicas, sinaliza os processos de aculturação ocorridos nessa cidade desde sua proclamação a capital do vice-reino. Entre os principais nomes da arte colonial brasileira, como Aleijadinho (1730 - 1814) e Manoel da Costa Athaide (1762 - 1830), diferencia-se por ser o único a desenvolver, paralelamente aos trabalhos em igrejas, obras no campo da arte civil.

Em 1748 Valentim é levado a Portugal por seu pai, onde permanece até os 25 anos, retornando ao Brasil por volta de 1770. Naquele país aprende o ofício de escultor e entalhador. Não se sabe ao certo quais são seus mestres. Mas é preciso lembrar que durante o período de formação em Portugal o jovem presencia o desenvolvimento do estilo pombalino. Para o plano de reconstrução de Lisboa, após seu incêndio em 1755, o Marquês de Pombal, então ministro das Finanças de Dom José, privilegia partido arquitetônico e decorativo mais sóbrio, excluindo a dispendiosa talha dourada. O modelo seguido é a arte italiana, que, em fusão com tradições da arquitetura portuguesa, dá origem às igrejas pombalinas. O ideário iluminista despótico de Pombal logo chega à capital do Brasil pelo governo do vice-rei, Dom Luís de Vasconcelos e Sousa (1740 - 1807). Mas se em Portugal o gosto italiano toma a dianteira, no Rio de Janeiro as igrejas com fachadas pombalinas (como é o caso da Ordem Terceira do Carmo e de São Francisco de Paula) não abandonam a talha dourada da tradição luso-brasileira, abrindo caminho para o desenvolvimento de uma versão regional de grande delicadeza e requinte do estilo rococó, principalmente pelas mãos de Mestre Valentim.

O nome do artista aparece pela primeira vez como entalhador na obra de decoração da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, em 1772, como discípulo de Luís da Fonseca Rosa. Apesar dos acréscimos ornamentais ecléticos do século XIX, ainda são identificáveis características do estilo de Mestre Valentim. A talha dourada sobre fundo claro do retábulo-mor é amplamente decorada com motivos rococós como guirlandas, buquês de flores, festões de folhas, laços, cabecinhas de querubins, que permitem uma sensação óptica de movimento da superfície. Os anjos-meninos caracterizam-se, entre outras coisas, pelo rosto arredondado, feições levemente amulatadas, bochechas e olheiras marcadas, lábios com contornos definidos, pescoço grosso e curto, olhos saltados e caídos, cabelos abundantes e fios marcados, sinalizando o estilo de querubins de Valentim. Destaca-se no conjunto a inclusão de colunas salomônicas típicas do barroco joanino no lugar de colunas retas de acordo com um gosto rococó mais classicizante.

No entanto, é na Capela do Noviciado da Ordem, cuja decoração é executada entre 1773 e 1780, que Valentim apresenta todos os elementos de seu estilo. Trata-se de um salão de planta retangular e teto abobadado revestido de talha dourada sobre fundo branco, formando uma unidade decorativa ímpar. O retábulo é constituído de banqueta-altar em forma de sarcófago, tendo ao fundo colunas retorcidas, num jogo de saliências que prepara o olhar para a visão da Nossa Senhora do Amor Divino. A decoração é repleta de rocalhas, guirlandas, festões florais, cabecinhas de anjos, que se repetem por todo o espaço e nas molduras preciosamente "bordadas" nos mesmos motivos. A composição da talha segue um sentido de simetria típico da Escola de Lisboa, mas, em geral, apresenta soluções de caráter mais intimista do que monumental. Isso revela certo gosto cortesão presente na talha religiosa carioca na segunda metade do século XVIII, embora tranqüilamente aliado a elementos grandiosos do barroco joanino. Em sua última obra, a talha para a Capela do Noviciado da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Paula (na qual o artista teria trabalhado de 1801 a 1813), repetem-se as soluções de mais de 20 anos anteriores. Contudo, a talha um pouco contida, simplificada e simétrica, inclinando-se a certa compartimentação formal mais classicizante, aponta para a introdução de um espírito neoclássico.

No âmbito da arte civil, o artista realiza tanto obras de embelezamento público quanto de saneamento e abastecimento de água, executando trabalho originalmente de engenheiros militares. Seu principal solicitante é o vice-rei, Dom Luís de Vasconcelos e Sousa. De todas as suas obras, a mais marcante, sem dúvida, é o conjunto formado pelo Passeio Público (1783), primeiro jardim de lazer do carioca, e pelo Chafariz das Marrecas (1785, destruído em 1896). Seu projeto reporta-se às idéias iluministas de bem-estar, civilidade, higienização, progresso, que deveriam transformar a capital brasileira numa cidade moderna. Tal projeto simboliza também uma natureza dominada pela razão e ação do homem.

Mestre Valentim realiza tanto o risco em estilo barroco em forma de hexágono irregular cortado por aléias (sendo que a principal em linha reta tem como ponto de fuga a Baía de Guanabara) quanto fontes, elementos decorativos, portão e portal. No conjunto, diversas vertentes artísticas estão presentes, como o barroco, na estrutura dinâmica e cenográfica do jardim e nos elementos escultóricos do portal; o rococó, nas curvas e contracurvas e estilizações florais do portão em ferro fundido2 e nas esculturas em metal de Eco e Narciso (ambas se encontram atualmente no Jardim Botânico do Rio de Janeiro); e o espírito iluminista de catalogação e ordenação da natureza no paisagismo e nas representações naturalistas de animais. Em seu conjunto, a obra representa o início de uma tradição de escultura pública não-religiosa e da urbanização como forma de embelezar a cidade.

Amplamente reconhecido em sua época, Mestre Valentim ocupa na história da arte brasileira lugar de transição, no qual artista e técnico-artesão, passado e futuro, arte religiosa e laica, barroco e rococó, espírito clássico e nativista convivem em harmonia em sua obra.

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